domingo, 28 de setembro de 2008

a romantica.




No décimo quinto dia do casamento, Dinaura estranhou:
- o que é que há contigo?
Sobressaltado o marido:
- comigo? Nada, por que?
E ela, num suspiro:
Esta com uma cara!
Muito sensível e perspicaz, Dinaura vinha notando o seguinte: que a partir do quarto ou quinto dia da lua-de-mel, Joãozinho deixara de ser o esposo maravilhado e sôfrego. Por exemplo: seus beijos iniciais eram de uma exemplar voracidade e quase a sufocava. Por vezes, queria protestar “que é isso, meu filho? Calma no Brasil.” Ele, numa auto-satisfação profunda, feliz por este temperamento, fazia cabotinismo:
- você ainda não viu nada!
- credo!
E de repente, Dinaura começou a sentir pequenas mudanças e uma serie de de sintomas desagradáveis. Os beijos não tinham nem a mesma intensidade nem a mesma duração. Ele começou a bocejar muito, na sua frente, sem o menor escrúpulo. Dinaura deixou passar uma, duas, três vezes. Por fim não se conteve:
- ih, meu filho!
- o que?
- tão feio isso que você faz!
Espanto honesto de Joãozinho:
- mas eu não fiz nada!
- fez sim! Bocejou na minha frente!
- Ué?
Ela, sentida, desencantada, insistiu:
- considero isso uma falta de poesia tão grande!

Eterna lua de mel

Era filha única, criada com muito mimo. Não podia ter um resfriado, uma coriza trivial, porque a família caía no pânico mais desenfreado. Já era noiva e ainda ouvia recomendações pressagas:
- olha o sereno, Dinaura! Cuidado com a friagem!
Fisicamente frágil, sem saúde: suscetível de gripes constantes e sob a suspeita de sinusite – Dinaura pouco sabia pouco sabia da vida, dos homens e de suas paixões. Tinha ingenuidades das mais alarmantes, infantilidades de tal ordem que um exagerado cochichou, certa vez:
- mas esta menina é uma débil mental!
Nem tanto, nem tão pouco. Fora educada como numa redoma, sem contato nenhum com as coisas feias e turvas da vida. E, alem do mais, dum romantismo frenético. Um estrala mais clara e soltaria a fazia chorar; ouvindo uma reles valsa, desfalecia; e desmaiava também, com certos perfumes. Uma senhora da vizinhança, desbocada e prosaica, tinha mania de dizer “histerismos!”. Mas a família a tratava como se fosse um anjo absoluto, um anjo insofismável. Se Dinaura chorava nas fitas tristes, era um deslumbramento unânime de todos os parentes, inclusive a criadagem. A própria menina começou a ter a vaidade dessa lagrima fácil e tão celebrada. Desde os 12 anos, sonhava com um amor eterno, para si mesma. Quando via uma marido bocejando na frente da mulher, e vice versa, achava uma coisa inimaginável e sacrílega. Jurava,então, para si mesma, que jamais incidiria no mesmo prosaísmo conjugal. Calculava que amaria seu esposo, fosse quem fosse, da mesma maneira, sempre. Uma colega, assanhadíssima, fez o comentário:
- ninguém pode gostar sempre da mesma pessoa! Duvido!
Dinaura teve uma revolta como se a opinião encerrasse, em si mesma, uma obscenidade. Ergueu o rosto, triste e altiva:
- pois eu sou assim.

Desilusão

Casou-se com Joãozinho na convicção de que o amaria sempre como no primeiro dia. Pouco antes do casamento, viu uma fita passada na época de Luís XV. E só lamentou, na saída do cinema, que o noivo não usasse punhos de renda, como os nobres daquele tempo. No quarto ou quinto dia de lua de mel, viu-o bocejando. Ate então ela não fizera nada parecido, preservando a poesia das maneiras, palavras e roupas. Era tão minucioso seu controle que, de vez em quando, ia ate o quarto passar perfume nas mãos. E, depois de cada refeição, escovava os dentes por causa do hálito. Enfim, fazia tudo que humanamente possível para que ele a considerasse, sempre, uma “grande esposa”. Enquanto ela agia assim, que fazia o marido? Acusava os primeiros sintomas de tédio. Ela, com o máximo de descrição, gemia:
- eu acho que te dou sono, meu anjo. Você boceja tanto!
Ele explicava, em meio de novo e espetacular bocejo:
- é o estomago cheio. Como para chuchu!
E como, ao longo dos dias, ele continuasse bocejando e assumindo atitudes cada vez mais prosaicas, ela se deixou tomar pela melancolia:
- só te digo uma coisa: antes morrer que ser traída!
Foi uma atitude tão extemporânea, tão sem lógica, que Joãozinho fez o natural espanto:
- sossega, leoa!
Mas notou que os olhos da menina estavam marejados. Veio beijá-la na face. Ela, sem comentário, passando as costas da mão nos olhos, observou: “não foi na boca! Foi na face!”. Ele, preocupado com futebol, corridas, cinema e amigos, não deu maior importância a episodio. No café, em conversa com amigos, observou para um deles, que acabava de noivar.
- casamento é um golpe errado! O sujeito que casa é burro!

Novos amores

Outros sintomas, cada vez mais típicos, de desinteresse, foram aparecendo. Dinaura achava a maternidade, textualmente, “uma coisa sublime”; casara-se na presunção, no desejo de, pelo menos, um filho. E quando, já na previa adoração da criança futura, falou nisso, Joãozinho foi rotundo:
- filho é abacaxi!
Dinaura gelou, por vários motivos, inclusive pela gíria abominável. Parecia-lhe uma profanação de um termo tão ordinário. Podia ter protestado, mas sua revolta se esvaia, geralmente, em suspiros, melancolias e cólicas de fígado. Fez uma nova insinuação em forma de pergunta:
- se eu morresse, você ficaria triste?
Ele foi grosseiro:
- ora, Dinaura. Vai dormir que teu mal é sono! Que conversa!
Ele, porem, foi para o quarto, na frente. Lá, de pijamas, deitou-se na cama, abriu o jornal e concentrou-se no programa turfístico. Daí a pouco, a mulher vinha deitar-se ao seu lado; e suspirou:
- não tenho medo nenhum da morte. Nenhum, nenhum.
Joãozinho perdeu, de todo, a paciência:
- oras bolas! Vê se não chateia!
A expressão “chateia” doeu na moça, e fisicamente, como uma punhalada. Ela concluiu, com impressionante facilidade “se ele me diz isso é porque não me ama, deixou de me amar!”. E, por coincidência ou não, o fato é que esta conversa foi o ponto de partida para uma transformação em suas vidas.
Sensível, imaginativa, Dinaura dizia a si mesma dias depois “ tem outra.”

A outra

Então, dia a dia, a jovem esposa não podia ver o marido, que não falasse em morrer. Ele arranjara um biscate na policia e andava com um revolver enorme. Todas noites, Dinaura olhava aquela arma numa espécie de fascinação. E, agora, era mais direta:
- olha o que eu te avisei, Joãozinho: se tu me traíres, eu me mato, Joãozinho.
A principio, ele deixava se impressionar. No fundo, era um bom rapaz, com horror a defuntos; e, se pudesse, ninguém morreria, nunca, em lugar nenhum. Mas a ameaça da esposa, repetida ate a exasperação, deixou de comove-lo. E mesmo seus amigos de bilhar, de corridas, foram categóricos:
“é conversa fiada!mentira!”. então, ele não ligou mais aos gemidos da mulher, aos suspiros, e nem observou que ela emagrecia de uma maneira assustadora, que estava cada vez mais frágil e com os pulsos finos e transparentes. Uma noite, Joãozinho chegara em casa com um mau humor sinistro. Tivera um bate boca com uma pequena de dancing, que era uma de seus grandes rabichos pos matrimoniais. A titulo de distração, resolveu limpar o revolver. A mulher, ao lado, com seu ar de mártir, olhava, ora o marido, ora o revolver. Ate que começou a bater na mesma tecla: que,um dia, se matava; que se atirava debaixo de um bonde, de um ônibus. Ele, pensando na outra, explodiu:
- ótimo!
E ela:
- eu sei que é ótimo, sim!sei que você deseja a minha morte! Mas não faz mal, deus é grande!
Então, o rapaz, que acabara de limpar a arma e de recolocar as balas no tambor, teve uma atitude de cinismo, que não era muito de seu temperamento. Virou-se para Dinaura e ofereceu p revolver:
- querendo usar, não faça cerimônia! O prazer é todo meu!
A mulher recuou, num súbito medo daquela arma tão próxima e terrível. Viu-o aproximar-se, com a mão estendida. Encostada na parede, ainda balbuciou:
- não brinque, João! Olha que deus castiga!
Mas ele, na sua alegre e picolla crueldade, insistiu:
- toma! Segura!
Em câmera lenta, ela foi estendendo a mão, ate que apanhou a arma. E a olhava, com surpresa, fascinada. Dir-se-ia que jamais vira um revolver. O marido diante dela, esperava também; achava graça; dizia:
- é só puxar o gatilho. E pronto!
Como ela continuasse atônita, no pavor histérico da arma, berrou,afinal:
- ora, não amola! Vê se não chateia!
Foi talvez a expressão “chateia” que a decidiu. Puxou o gatilho seis vezes. O marido foi atingido uma vez, duas no peito, quis correr, fugir. Mas lhe faltaram forças; caiu de joelhos e assim, de joelhos, foi varado por mais duas ou três balas. Morreu logo e seu ultimo pensamento foi a pequena do dancing.

nelson rodrigues 1912 + 1980 - retirado de "a vida como ela é...elas gostam de apanhar" - editora agir.

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